textos críticos
correspondência 2
Os visitantes
Ernesto Bonato
Chegaram nesse mundo com os olhos curiosos e as mãos ávidas por tocar a terra, as cinzas, os gravetos em que pisaram, as minas de grafite. Seus gestos foram de espalhar as sementes, semeá-las num lanço girado, meio louco, meio ébrio. Seus pés amassaram o barro e o barro tingiu-lhes o corpo como sangue, como carne de si mesmos. Cavaram o solo com as unhas até o humus comer-lhes os sabugos enquanto o cheiro úmido dos seres que dormem à sombra se levantava e lhes inflava as narinas. Plantaram ali também os ossos de seus semelhantes, misturados às sementes, aos esporos, ao líquen iridescente. Comeram o alimento, sugando e lambendo o caldo que lhes escorria pelos membros, sôfregos, felizes, sob a copa de uma árvore imensa e antiga de onde pendiam ninhos e teias brilhantes. Ao longe, as cadeias de montanhas se erguiam escuras contra a luz do ocaso. O fogo, o lume, ainda era tentado com espanto e nele aqueceram suas peles cobertas por desenhos intrincados. Seus sussurros ressoavam no fundo da floresta como sons estranhos, ameaçadores. Deitaram-se sobre folhas gigantescas imprimindo seus corpos misturados, esmagando a seiva ainda viva, que tingia a terra. Encolhidos uns nos outros, arregalaram os olhos para o céu, com saudade, recordando nebulosas, gigantescas medusas a moverem-se no espaço longínquo, e então sonharam.
Ernesto Bonato
Novembro 2024
correspondência 1
Pouso Salto Voo
Ernesto Bonato
Cerda embebida na água turva e negra. Sangue da escrita que corre em veios e fibras de papel. A pena toca a polpa fendendo mundos. Cúpulas resplandecentes guardam os seus escuros – Cidades orientais.
A tinta goteja como as horas, como 0 tempo, como as lágrimas úmidas de um poema não escrito, mas sonhado nas pálpebras entreabertas de um falcão contra o céu azul. Memória e esquecimento se misturam nos espaços entre os signos incertos como rastros de um caranguejo na areia branca e fina do mar. Rastros- Palavras- Gestos. Desenho de Um jardim e de uma flor que secou. Imagens de rostos evocados pelo afeto (mais uma vez e uma vez mais), gastos pelos toques que os afagam. Formas ténues, sussurradas pelo vento que revira as páginas de um caderno de anotações esquecido sob a luz fresca da manha. Abandono. Cornija alta, travessão. Caligrafias imaginárias tecidas, entretramadas pelo acaso, feitas de carbono, gordura e goma. Correspondências enviadas pelo vazio, para o vazio. Tempo algum, lugar nenhum.
Lembrança, desejo, desespero. A busca de uma vida feliz. Na vizinhança de uma árvore imensa, uma casa de concreto e aço abriga em seus silêncios, palimpsestos vegetais amaciados pelo toque do pincel e do espírito, reunidos pelo tempo e pela amizade. Uma luz transversal toca as suas faces. ATOTÔ!
Ernesto Bonato
Agosto 2024
FLOR E PEDRA
Fernando Stickel
Flor e pedra. Claro e escuro. Quente e frio. Pele e osso. Vermelho e azul.
A obra de Maria Villares é extensa e longeva. Seu universo pictórico é labiríntico e habitado por seres sem rosto. Mas eles estão ali, silenciosos, observando, e comandando o espetáculo.
Conhecer suas pinturas é como passear por dentro de uma caverna, com uma lanterna na mão, descobrindo imagens fascinantes que brotam da escuridão, uma hora usando uma lupa, outra hora se aproveitando de um raio de sol bandido intrometido na escuridão. Pode-se também pensar em utilizar um periscópio, ele te revelará mais algumas imagens surpreendentes…. Mas, o que está fazendo esta flor aqui???!!! Assim é a pintura de Maria Villares.
Maria não busca os holofotes, mas a solidez da disciplina, coerência e permanência. Seu trabalho atravessa os anos sem interrupção, uma coisa fluindo para outra coisa, por vezes inclinada à gravura, por vezes à cerâmica, mas mantendo sempre o norte do desenho. Sim, o desenho comanda seu destino e sua arte, esta verdade permanente transparece nesta série de pinturas executadas ao longo de mais de duas décadas.
As pinturas de Maria não se revelam por completo, elas são discretamente generosas ao fornecer pequenas pistas ao arqueólogo de plantão que queira mergulhar em espaços desconhecidos à procura de flores ou outras iguarias no Jardim das Delícias de sua obra. Tal qual os peixes luminosos do abismo, flores crescem em locais proibidos…
Fernando Stickel
Outubro 2023
TECENDO O TEMPO
Luiz Armando Bagolin
La durée est le progrès continu du présent qui ronge l’avenir et qui gonfle en avançant”
A duração é o progresso contínuo do presente que rói o futuro e infla avançando.”
Henri Bergson
Em princípio, a série Nexus, de Maria Villares, pode parecer um ponto de inflexão, um desvio autoimposto em relação à sua trajetória pautada principalmente pelo desenho, pela gravura e pela pintura. Se nestes meios a procura gira em torno da capacidade que a linguagem tem de estar ainda a serviço da representação (as massas de cor são cingidas com luzes e sombras levando as imagens a se recomporem organicamente no campo abstrato), em Nexus, além de tudo isso, é a questão do tempo o foco central para a artista.
Maria trabalha com a estratégia, comum para muitos artistas desde a década de 1960, de seriação ou do desenvolvimento de ideias ou temas por conjuntos e subconjuntos, devidamente titulados, mas há uma ponte de ligação entre todos eles: a compreensão do tempo como índice da consciência ou do tempo intuído, aquele que dissolve a percepção do espaço como uma reunião de unidades classificáveis condicionadas ao tempo físico.
Bergson nomeou a este último de ‘variável t’, o tempo espacializado, passível de ser marcado num relógio e que era oposto ao tempo interior que referia o passado no presente, avançando incessantemente sobre o futuro. Ao contrário do tempo positivista ou das ciências empíricas, o tempo bergsoniano não admite a sucessão intervalar, as hiâncias que se desenvolvem linearmente desde o passado até o futuro. Relativamente, nele a ideia de progresso também é dissolvida, correspondendo os diversos momentos que vivemos a matérias apercebidas do mesmo tempo, que é sempre idêntico a si mesmo e contínuo na duração.
Indiferente à ‘variável t’, Maria Villares também produziu ao longo dos anos diversos trabalhos que se intercambiam quanto à questão da apresentação do tempo vivido, embora as suas matérias sejam variadas, assim como os seus resultados.
Para além da seriação ou de tão somente se compreender a sua obra como agrupamentos homólogos às várias fases de sua vida, o intercurso destes se dá mediante um canal de ligação, um elo.
Nexus é portanto uma espécie de amálgama do modo como a artista produz e se relaciona com o próprio trabalho. Mas Nexus nomeia igualmente uma série iniciada em 2001, ao observar as teias de aranha molhadas de orvalho na contraluz da manhã, segundo depõe a artista. É o momento da localização do universal no particular, com a possibilidade de construção de metáforas sobre as suas memórias: novamente aqui o tempo, inconsútil, perpassa o passado no presente, lembrando a ausência da mãe, e avança sobre seu futuro, representando o nascimento de uma de suas filhas.
Nexus enlaça e comenta outra série, anterior, ‘Muito além da maçã’. Em algumas das obras desta série, a fruta é vivissectada em finíssimas camadas, alterando-se minimamente o tegumento de sua semente. A anatomia da maçã é simultaneamente uma obra plástica e a busca pela origem de si em seus genes e cromossomos é metáfora de seu próprio corpo e do corpo da mulher como máquina criadora.
Em Nexus, a série, o corpo é reconstruído por meio do entretecimento de inúmeras tramas. Tal como na observação do endocarpo da maçã cortada ao meio, os nós das linhas que se cruzam nessas tramas se transformam em signos gestuais, espécies de assinaturas ou centros de encadeamentos de macromoléculas (novamente cromossomos?) que o desenho, a monotipia, a gravura, as frotagens e as costuras dão a ver. Mas estes são corpos diáfanos, sem ossatura, corpos macios ou moles que, ao ganhar o espaço, dependem cada vez mais do meio exterior para contribuir com a sua forma ou aparência final, porém temporária.
Da sequência de imagens planas nas quais os liames são representados como significantes em espaços gráfico-pictóricos aos casulos tecidos com linhas de nylon, Nexus busca ser a síntese das muitas séries passadas, e de incessantes buscas no ambiente da arte, lançando ao espaço literalmente a duração do tempo imaginado. É a partir deste tempo que as matérias tecem os espaços, grandes ou pequenos, não importa, adequados ao processo de consecução artística.
Nexus é também atualmente uma instalação que se apropria do grande vão interno da Biblioteca Brasiliana. Qual Medusa, estende-se tentacularmente em diversas direções, propondo novas considerações sobre o aparato arquitetônico projetado pela razão ordenadora: os seus inters- tícios e ligações somam-se, formando pouco a pouco um organismo agigantado e malemolente, semelhante à hera que avança sobre os muros arruinados da cidade em torno. Amarradas ao espaço, estas estruturas convidam o espectador a interagir, tal como em obras de Lígia Clark.
Há, no entanto, uma diferença fundamental entre esta instalação e as experiências derivadas do neoconcretismo: aqui não se trata de considerar o objeto perceptível como algo que será apenas apropriado e experimentado pelo sujeito percepiente. O casulo instalado aciona todas as demais experiências passadas da artista, quiçá também as do espectador, fazendo-as participar daquele tempo invariável e contínuo. Assim, a obra dependurada no espaço não está apenas ali, naquele lugar, mas em muitos outros, reapresentando-se, como afeto, por exemplo, nas redes fininhas que prendiam o cabelo de sua mãe no passado. Como fruto da intuição pura, ela é coincidente com a vida do Espírito, tornando-se em mais um gesto que teve por ocasião Maria.
Luiz Armando Bagolin
13 de novembro 2019
MARIA TECENDO NEXUS
Ana Angélica Albano
O dom de esculpir o orvalho só encontrei na aranha.”
Manoel de Barros
As gotas de água parecem pérolas penduradas na fina seda da teia depois da vaporização do orvalho”
Jiang Lei*
O fascínio de Maria Villares pelo desenho da teia de aranha salpicada pelo orvalho da manhã, encontra ressonância na poesia de Manoel de Barros e a inicia no oficio da tecelagem: tricotando águas passadas, materializa emoções, diz ela.
O simbolismo do fio, presente em muitas mitologias, é essencialmente o do agente que liga todos os estados da existência entre si e ao Princípio. Esse simbolismo exprime-se sobretudo nos Upanixades, onde se diz que o fio (sutra) liga este mundo e o outro mundo e todos os seres.
Maria refaz, simbolicamente, o caminho percorrido por tantas mulheres na antiguidade, especialmente na China, onde a tecelagem ritual era associada à tecedura do cosmos. No silêncio de seu ateliê inventa seu próprio rito de passagem, materializado em obras que nos permitem contemplar os estágios do seu processo de criação.
Inicia tricotando uma enorme trama de fios luminosos de PVC e vai nos enredando em casulos e módulos retangulares. Da tecelagem passa ao desenho de observação e nos surpreende com desenhos, onde registra, com precisão obsessiva, diversas fases da tecelagem. O que, inicialmente, era registro do tecido, dá passagem a um salto criativo e uma multiplicidade de experiências gráficas começam a surgir.
Desenhos delicados executados com gravetos, canetas e pincéis em papéis pequenos e, também, em papéis muito longos. Alguns desenhos são seccionados na horizontal e transformam-se em frágeis objetos protegidos por cúpula de acrílico. Podemos observar o trânsito continuo da tecelagem para o desenho, a pintura, a gravura e a assemblage, em experiências que se sobrepõem, se complementam e se renovam, sem que notemos a precedência de uma sobre a outra ou a passagem do tempo.
As tramas luminosas inspiram outras negras, assim como desenhos e pinturas densas, escuras que, aos poucos, nos devolvem novamente à luz. Com pinceladas e ranhuras coloridas, Maria deixa-nos entrever o ouro do processo alquímico de transformação da memória em invenção: obra.
Ana Angélica Albano
verão de 2018
* Jiang Lei, cientista do Laboratório Nacional de Pequim, onde pesquisadores têm estudado como a seda da aranha é
capaz de reter o orvalho da manhã
PISTAS
Luciana Eloy
A mostra Pistas reúne no Espaço Nexus diferentes momentos dos percursos de criação dos artistas que integram a Ponte Cultura. Tudo se liga a partir dos cadernos de artista nos mais diferentes meios e formatos, além de outros objetos que aqui se mostram como índices e rastros dos gestos construtores que permeiam essas elaborações poéticas em processo.
Os trabalhos aqui apresentados refletem um pouco do olhar de cada artista para o mundo e como eles percorreram diferentes caminhos manifestando seus modos de proceder na criação. É possível perceber como esses caminhos vêm se constituindo no sentido de conectar ideias, registrar pensamentos, percorrer trajetos, coletar materiais. Ações que se movem no sentindo de evidenciar marcas das experiências vividas que pouco a pouco se transformam em algo singular.
Misturada a essas manifestações podemos encontrar recortes de tempos e espaços, linhas que desenham cartografias de afetos, vínculos com a natureza, com o cotidiano, com a terra e o corpo. Aspectos que de alguma forma são fios que tecem as poéticas desses artistas que aqui apontam pistas do que pode vir a ser um trabalho futuro, uma nova organização de realidade.
Evidenciar essas pistas de processos numa mostra conjuga um momento importante para a Ponte Cultura que desde março de 2016 vêm trabalhando com a ideia de novas travessias. Entendendo travessia como um caminho que se atravessa juntos, entre fronteiras territoriais e afetivas, buscando sempre estimular práticas em um circuito de artistas de diferentes culturas e olhares.
Nesse sentido, a Ponte Cultura opera na via da aproximação das diferenças, fazendo borrar as fronteiras entre nacionalidades, modos do pensar e do fazer artístico, possibilitando que essas experiências encontrem o publico e assim possam provocar novas percepções e novos olhares sobre o mundo.
Luciana Eloy
22 de março de 2017
TÃO PERTO, TÃO DISTANTE
Ana Angélica Albano
No princípio era a gravura e cinco artistas à procura de suas paisagens.
Unidas pelo amor ao seu ofício, trocam segredos, desvelam caminhos sem, no entanto, misturarem suas imagens que, a despeito da intimidade que vai se instalando no grupo, permanecem originais.
Quando sou convidada a adentrar a intimidade de seus ateliês, a cada porta que se abre, confirmo a originalidade dos processos, a potência delicada de percursos poéticos tão distintos. E aceito o desafio (e o privilégio), de acompanhá-las na realização de uma exposição.
A cada visita vejo surgir montanhas, ilhas, aguas profundas, horizontes inalcançáveis, uma casa de praia, árvores diminutas, árvores maiores e descabeladas, nuvens carregadas de tempestades que nunca acontecem, uma cachoeira, um pote, folhagens oníricas, tramas, rosas que deixam entrever um rosto de mulher, o esboço de uma mão…Imagens portadoras de desejos, de sonhos, de mistérios. Histórias silenciosas apresentadas, mas não reveladas, nas imagens transmutadas em gravura na solidão dos ateliês.
As gravuras, por decisão do grupo, são todas impressas em papéis do mesmo tamanho e tem a paisagem como tema. O formato e o tema, no entanto, são apenas o pretexto para um projeto coletivo, que cada artista realiza à sua maneira.
Matisse, citando Delacroix, escreveu: feitos os estudos necessários para iniciar uma pintura, é necessário pôr mãos à obra e exclamar: -“E agora, os erros que se danem!” Acrescentando em seguida: é preciso deixar a intuição falar.
Deixando-me guiar pela intuição, procurei observar com atenção a intuição que havia guiado o percurso de cada artista. E, na seleção das obras, optei pelo desvelamento dos processos, pela (aparente) repetição de imagens que carregam diferenças sutis, incluindo, também, o que poderia ser considerado erro, mas que contém o estranhamento necessário para o surgimento da poesia.
A intenção é colocar o espectador em contato com o pensamento de cada artista, torna-lo cúmplice de sua poética.
Um convite para desfrutar um tempo de delicadeza…tão perto, tão distante.
Ana Angélica Albano
verão de 2017
A NATUREZA, OS SENTIDOS E A OBRA
Rosely Nakagawa
Encontramos ao longo da produção artística de Maria Villares o olhar atento à natureza; sementes, conchas, peles, encontrados, coletados, anotados e colecionados. O olhar que se detém na busca destes elementos, se une ao que constrói a obra.
Cada trabalho mostra a evolução de um processo que estreita a relação de técnicas especificas (pintura, cerâmica, gravura ou desenho), transformando o resíduo da natureza em base para uma reflexão construtiva.
Os papeis são tratados como cascas que revestem a base da pintura.
O pigmento é arrastado pela água sobre o papel, tecendo peles transparentes.
Na pintura, as camadas de tinta se desmancham em véus brancos; a cor aplicada sobre as formas, tecem tramas, órgãos, ossos.
As sementes ganham na cerâmica e no bronze, um território a ser fertilizado, construindo formas orgânicas, trazendo de volta a matéria viva para o barro .
O referente ressurge e desaparece em camadas e formas que aproximam e se afastam.
A abstração, sempre acompanhada de forte relação com a matéria, nasce de sua força pictórica e formal.
Rosely Nakagawa, 2015
para a Exposição Maria Villares – inauguração Espaço Nexus
Espaço Nexus – São Paulo/SP
ENTRE NÓS
Margot Delgado e Maria Villares festejam mais um encontro nesta exposição a que deram o título feliz de Entre nós. É a comemoração de uma amizade construída na cumplicidade do afeto e do ofício. As duas artistas dividem também a vizinhança com as árvores do Alto da Boa Vista. E quando cai no jardim de Margot uma flor da sua magnolia grandiflora, ela a recolhe em desenhos ou leva-a para Maria. Não é uma coisa morta para ser compartilhada, mas em transformação, cujo viço temporário aos poucos se transmuta em secura perene. Ao perder seus fluidos a flor vai assumindo outra matéria, com novas cores e formas. E, não raro, vai alimentar igualmente o trabalho da amiga. No ateliê de Maria, ela se junta aos sambaquis de conchas, pedras e gravetos, outros guardados que guardam outras histórias. Nesta exposição estão lado a lado dois projetos poéticos distintos, mas que têm em comum esse olhar atento para os estados mutáveis do ser.
Origem
Maria Villares sempre teve um olhar especialmente atento para as formas da natureza. Ela lembra que o desenho de observação desempenhou papel importante em seu aprendizado.
Maria vinha se interessando, há alguns anos, pelo metabolismo interno dos vegetais e minerais e principalmente pela decadência neles promovida pelo tempo – a flor que murcha, as fatias de maçã que oxidam, as conchas que perdem a cor, os ovos e gravetos que envelhecem. Paradoxalmente, e porque esse não era um processo linear, embrião e morte se confundiam. Os armários e gavetas de seu ateliê, povoados por essa coleção de modelos inermes sempre à disposição, formam um curioso gabinete de maravilhas.
A partir da observação dessas vidas secas ela produziu em várias técnicas e linguagens. Surgiram pinturas retratando esqueletos, cerâmicas que mimetizavam pequenos ossos, pedras e esculturas, gravuras, desenhos, pequenos recortes e colagens, técnicas mistas. E surpreendente ver que nos últimos três anos ela deixou de lado, ao menos temporariamente, o tema da decadência. Sua coleção de espécimes continua a inspirá-la, mas a tensão do trabalho anterior dá lugar a formas distendidas, que respiram livres na amplitude do papel. Mesmo quando se debruça sobre um galho seco de orquídea, é para comemorar a beleza, em uma série poética de três aquarelas “japonesas”, que lembram a linguagem do sumiê.
Ela tem trabalhado recentemente com litografias, e algumas recebem interferências, onde o grafismo predomina. Nesta exposição comparecem alguns desses exemplares, em que convivem o negro e a cor, às vezes sobre elementos de observação arquitetônica. Também é mostrado aqui um conjunto de aquarelas e técnicas mistas, de dimensões menores e colorido intenso, feitas em 2005. Neles se adivinha uma flor, um vaso, mas o que realmente interessa é a sabedoria na construção das massas de cor e a matéria resultante da junção com outras técnicas, como bastão oleoso, carvão, ou camadas sobrepostas de tinta acrílica, criando velaturas.
É o caso do único trabalho grande em branco e preto. Sua eloquência natural não se enrosca mais no tema da morte ou da prisão emocional. Maria parece ter exorcizado os nós e as tramas com que produziu objetos e gravuras que constituíam a série Nexus, para se entregar à aventura destas magníficas aquarelas. A veemência está agora nos gestos largos, nos grafismos expressivos, nas flores que não temem a sedução, entreabertas sobre o fundo receptivo e claro do suporte. Essas aquarelas têm em sua origem a representação de flores, mas são ricas em outras sugestões – às vezes um pássaro, outras vezes pessoas ou objetos.
E há também e simplesmente, o prazer do gesto largo, uma sorte de escrita grandiloquente e sem palavras. Não são apenas as mãos da artista que trabalham, acostumadas a enfrentar o artesanato dos ofícios, mas advinha-se toda uma coreografia corporal. Na verdade, o tema nascente é o da liberdade, e Maria parece muito à vontade nesse novo caminho.
Vera d’Horta, março de 2015
OS NEXOS DE MARIA
A fabricação da existência e seus limites sempre interessaram a Maria Villares. Ela tem observado o metabolismo interno das formas, em busca de entendimento dos processos marginais. O esqueleto dos seres naturais, visível nas radiografias, o desenho dos gravetos apanhados na praia, a estrutura irradiada da teia da aranha, tudo isso vem sugerindo caminhos a seguir.
Quando ela dissecou a maçã em lâminas, foi para seguir de perto a sua morte, a perda dos fluidos, examinar os resíduos, as peles secas se tornando couraças. Depois percebeu que suas metades traziam evidentes sugestões embrionárias, a vida se apresentando novamente. Sementes, casulos, fetos são referências de natureza uterina que há algum tempo habitam seus trabalhos. Na peça de cerâmica presente nesta exposição, a pedra no meio da água une a mimesis da gestação à sugestão delicada do ikebana.
Em obras mais recentes, ela continua a radiografar essa construção dos significados. O processo é igual àquele percorrido por quem tem as palavras, antes das idéias. E são as palavras que se enredam para construir um sentido que não se sabe bem de onde vem. O gesto feminino, antigo e eterno, de tecer e envolver, proteger e enredar, surge ampliado nestas obras. Grandes agulhas e o movimento repetido das mãos foram construindo, com fios de plástico branco, malhas que não são para vestir.
Quando o trabalho se avolumou, seu peso sobre o ventre a levou às lágrimas. Nascia um sentido. Ela viveu o interior desse processo voltada para o ritmo cadenciado dos dedos, como Penélope, que fez uma aliança com o tempo infinito da espera. Não por acaso, Maria deu a esta série o nome de Nexus e a genealogia dos vocábulos é reveladora. No Latim, nexus é nó, laço. Daí, ligação, vínculo, união.
O conjunto dos nós constrói a trama, que se apresenta como corpo lasso, mas que também é cota, armadura que respira. Resultaram estruturas rarefeitas e solitárias, de construção imperfeita, que exibem todos os acidentes de fabricação. Meio tricô, meio teia, seus corpos vazados lançam sombras no espaço, e essas projeções são como gravuras móveis. Parece quase natural que as tramas caminhassem a seguir para a superfície do papel, primeiro em forma de desenho, depois como gravura.
Os riscos de tinta reescrevem, com dramaticidade contida, o enredo dessas agonias silenciosas, e o vaivém dos laços resulta numa sorte de escrita espelhada. Os aparentes garranchos dos desenhos esgarçam as tramas, criam voragens, abrem espaços para a luz. Na gravura, positivo e negativo se espelham novamente, desdobrando suas imagens.
E nessas seqüências ampliadas, o que menos interessa é a perfeição, mas o mapeamento afetivo do tecido e do processo. E vale lembrar Aristóteles quando disse que os ofícios manuais completam o que a natureza não terminou.
Vera d’Horta, 2006
para a Exposição Maria Villares e Margot Delgado
Galeria Gravura Brasileira – São Paulo/SP
MARIA VILLARES: A EPIFANIA DA LUZ
Margarida Sant’Anna
Para alguns artistas, o branco da tela ou do papel pode inibir o ato criador; para outros, pode ser o suporte passivo da expressão: a resistência da matéria e o branco como cor ou campo luminoso parecem secundários. Na recente produção de Maria Villares, o branco resiste: luz e superfície são conquistas. Para a artista, a experiência com o mundo é uma forma de conhecimento, daí o enfrentamento com o suporte de trabalho e a busca pela luminosidade. Não existe “a prioris” nesse fazer: a possibilidade de uma poética manifesta-se apenas depois, uma vez construído e enfatizado o plano. Da materialidade do caráter bidimensional emerge então a trama de relações cromáticas e composicionais a partir da tentativa de ordenação do mundo sensível, que se dá pela redução de elementos da natureza representacional.
Existe algo de ético nesse fazer, nesse gesto refletido da experiência de ler das coisas mais do que a aparência delas. Uma síntese que pede ao olhar um tempo perceptivo outro — o tempo da contemplação — ao mesmo tempo em que propõe uma experiência diferenciadora para o olhar engolidor dos apelos visuais do mundo contemporâneo. E de fato, aquilo que parece, à primeira vista, elogio modernista do plano, oculta algo que somente a lentidão perceptiva pode desvelar. Da repetição paciente do gesto, como um artesão que alisa uma superfície, das sucessivas sobreposições da matéria, resultando em tênues variações tonais, a luz ganha corpo.
Raramente a artista se apropria de inscrições escritas na paisagem urbana londrina, ponto de partida de uma das séries presentes na exposição. Uma delas, entretanto, surpreende pela coincidência (se é que coincidência existe) — “godard” — e aqui, o círculo parece se fechar: em Passion, diante do “écran” branco, Godard (o diretor) indaga sobre a (im)possibilidade da criação. Maria Villares responde empiricamente a esse impasse. O sentido desses trabalhos é justamente a possibilidade do fazer artístico na relação direta com o mundo.
Margarida Sant’Anna, agosto de 2001
Exposição individual – Papéis: 1998-2001
Galeria Nara Roesler – São Paulo/SP
PARA ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER
Maria Alice Milliet
Sublimation is a search in the outside world for
the lost body of childhood"
Norman O. Brown
O corpo mobiliza a criação artística. Há uma tendência na arte contemporânea que encontra sua raiz na vida psíquica estruturada a partir de experiências corporais. Fantasias inconscientes geradas na mais tenra infância constituem o enredo subliminar dessas representações. Secretas histórias de amor e ódio, envolvendo primordialmente a mãe, depois o pai quando então se forma o clássico triângulo filho-mãe-pai, ressurgem nessas obras. Mãe e pai raramente aparecem por inteiro, vítimas que são de recorrente operação metonímica que das partes do corpo – seio, boca, genitais, ventre, vísceras, excrementos etc. – faz alvos do desejo infantil. Esses objetos de afeto ou repulsa podem ser substituídos por outros aos quais estão de alguma forma associados, tal como o útero à semente, à casca, à casa, à caixa e assim por diante. Sobre uns e outros, a criança projeta sentimentos contraditórios, amorosos e/ou agressivos. Desse padrão de interação sempre em crise resulta a ambiguidade dos significantes que inspira. Criam-se identidades, transferem-se emoções, correspondências são estabelecidas sem qualquer respeito às convenções. No reino da fantasia e da arte tudo pode.
O alcance dessa produção artística vai muito além do devaneio narcísico. Trata de experiências anteriores à verbalização que seguem sendo reforçadas ou minoradas por acontecimentos posteriores à primeira infância, em suma, uma subjetividade cuja existência depende fatalmente do outro, daí vem sua angústia, seu prazer e dor. O mergulho no universo da criança e da família – matriz de toda socialização – encontra em Louise Bourgeois sua maior expressão. Impossível não reconhecer em seus objetos e instalações o drama que encena. Na transposição do familiar ao simbólico, do anedótico ao mítico uma constante se impõe : o relacionamento conflituoso.
Quando Maria Villares começa a trabalhar a maçã, os conteúdos profundos que a motivavam, não eram evidentes. Olhando retrospectivamente, pode-se perceber a presença do arcaico em trabalhos anteriores, especialmente nos enormes desenhos de 1994 provenientes do registro de gravetos e pedaços de madeira recolhidos à beira mar então convertidos em seres totêmicos flutuando num espaço não referenciado, atemporal. Ainda antes, conchas, caramujos e corais apareciam em caixas de vidro que ela chama aquários. Nesse caso, era o mundo orgânico observado in vitro, a mesma postura distanciada que Maria assume ao lidar inicialmente com a maçã. Por um bom tempo, prevalece a disciplina própria da ciência. Seleciona e submete as maçãs a uma série de operações, recolhendo informações sobre seus diferentes estados. Observa as frutas inteiras ou em fatias finas depositas sobre folhas de papel como lâminas em laboratório; anota as transformações da matéria, ou seja, as mudanças de cor, as nódoas sobre o suporte, o enrugamento da casca, a redução da polpa, o enrijecimento, a mumificação. Procede depois a uma série de experimentos, realizando fotografias e fotocópias desse material, interferindo nos registros e reproduzindo-os em sucessivas operações.
Essa aproximação “objetiva” reveste de pseudocientificidade a primeira série de trabalhos. Entretanto, apesar da notável preocupação com o controle formal e técnico, o lúdico irrompe. É quando descobre que as maçãs fatiadas impressas em acetado transparente quando sobrepostas permitem jogos compositivos. Isso leva a objetos manipuláveis. Por outro lado, os cortes vistos em transparência fazem pensar em radiografias do corpo humano. Conhecer o corpo por dentro, sempre foi fascinante. Remexendo guardados, Maria encontra chapas radiográficas de órgãos internos que coloca na janela do ateliê, contraluz. Concomitante, vinha fazendo desenhos eróticos. Nada explícito, antes a apreensão topológica da sensação erótica, continuamente deslocada de uma região do corpo para outra. Na qualidade desses desenhos aflora uma sensibilidade madura. Entretanto, o meio gráfico, talvez porque já muito refinado, não lhe basta.
Maria, que havia reduzido o volume da maçã à bi dimensionalidade pelo seu seccionamento, retoma repentinamente o tridimensional. O processo criativo, até então bem comportado, mostra uma ousadia, diria mesmo um despudor. A maça ganha corpo, vira um objeto semiesférico sobre a parede em cujo centro há um botão translúcido: um grande seio/maçã intumescente, carnoso, assustador no seu gigantismo. Cabe aqui recordar as fantasias infantis em que o bebe, que no seio encontra sua maior satisfação, tem também impulsos agressivos para com seu objeto de prazer. Por frustração e medo da perda, a criança sonha sugar, morder, devorar o peito, em última instância possuir a mãe cuja onipotência chega a ser oprimente. Marcel Duchamp, sempre precursor, já isolava o seio em sua obra Prière de toucher de 1947.
O objeto cruciforme composto de 5 segmentos acoplados constitui um desdobramento do trabalho, ainda mais surpreendente. Estive aqui é o sugestivo título que Maria dá à obra. O modelo kleineano, que tem na fantasia inconsciente o princípio de estruturação da vida social, serve também à leitura dessa peça onde a maçã – fruto proibido – se confunde com o útero – lugar da gestação – em forma e cor. O tecido vermelho estofado e macio de que é feita a cruz reveste de carnalidade o símbolo cristão. A obscenidade dessa representação está em conjugar a ideia de sacrifício à de triunfo da carne.
Por fim, a bandeira tem uma maçã aberta ao meio estampada no centro e sobre ela a inscrição tirada do Gênesis … “o dia em que comerdes o fruto, se abrirão os vossos olhos sabendo o bem e o mal “. O estandarte cortado em tiras permite que se passe através. A Passagem, simbolicamente uma violação, é a via de acesso ao conhecimento conforme enunciado na sentença bíblica. Apesar dos impulsos agressivos implícitos nessas obras, não se pode ignorar que nelas existe algo da irreverência pop. A versão agigantada de objetos do real, os volumes recheados, as cores brilhantes fazem pensar nas esculturas moles de Claes Oldemburg. Transitando do comestível ao erótico, do banal ao simbólico, da maçã ao seio, à cruz, à cortina de botequim, a artista incorpora humor ao seu trabalho, ingrediente indispensável ao equilíbrio dessa equação plástica.
Maria Alice Milliet
14 de julho de 1999.
Exposição individual – Muito além da maçã
Galeria Nara Roesler – São Paulo/SP
OS TRANSFINITOS UNIVERSOS DA MAÇÃ
Norval Baitello Junior
O Outro Lado do Fruto Proibido
Um dia, Maria Villares desenhou a maçã. E, desenhando, descobriu, nas entranhas do fruto, a anatomia do grande mito, o principal e fundante mito da cultura ocidental, mas não apenas na sua superficial versão do proibido fruto do jardim do éden. Descortinou, nas entranhas da maçã, as homologias entre o mundo e o útero, vale dizer, entre o céu e o êxtase. E, como em todo mito há uma origem, também no fruto há ora um feto, ora uma foto, ora um fato, todos por se descobrir, por se revelar. Um feto, uma foto e um fato sempre apontam para o desvendamento de um segredo, o desenrolar, o desdobrar, o desenvolver de uma possibilidade, o desabrochar de uma nova forma. São sempre narrativas em aberto. Tal qual a anatomia da maçã, por Maria Villares, um narrar apontando para possibilidades em aberto.
Os Transfinitos no Seio da Maçã
E a maçã transforma-se em tema, motivo e personagem, que se desdobram todos em infinitas variações e mostram infinitas facetas. Como o Aleph de Jorge Luis Borges, o infinito não é exterior, mas interior. Como na matemática dos números transfinitos, a maçã contém um mundo em seu âmago, na sua alma mais íntima e insondável. Não é outra a essência dos símbolos – como o símbolo ‘maçã’ – e seu destino: ser parte que contempla o todo, ser o ponto que contém o universo, ser o ínfimo que abriga o infinito. (Como também não é outra a sina da semente, ou, igualmente, a do espaço uterino: conter o novo ser, em embrião). E para compreender essa matemática mítica do infinito dentro do finito é que Maria Villares vem experimentando com a maçã e seus desdobramentos: cortando, laminando, secando, deixando-a entregue aos vermes da decomposição ou conservando-a com formalina, acompanhando o seu enrugar de pele , fotografando suas configurações em mudança, observando-lhe os sucos da decomposição e sobretudo produzindo registros inconvencionais a partir da maçã e seus desenhos. Estes registros se desdobram em muitas séries, usando suportes, materiais e técnicas diversos: esboços e estudos em papel, maçãs laminadas sobre acetato, monotipias, e desenhos sobre papel vegetal, caixas, transparências. Tudo se desdobra em uma nova face da maçã, transfinitamente.
Os Movimentos da Maçã
Sua atenção de observadora naturalista, contudo, não é maior que sua capacidade de gerar superposições metafóricas, desdobrando seu objeto em séries infinitas de associações míticas, culturais, históricas, buscando significados profundos para os fenômenos da natureza. Assim nascem as séries de transparências, resultado de fotos de lâminas de maçãs. São fotos que ora se transfiguram em fetos, sempre acompanhados de traços, redesenhados, em seu movimento de arco, de coluna vertebral em curva. Ora as transparências são elas mesmas o desnudamento do íntimo da maçã, ora são pretextos para um desnudamento ainda mais profundo dos fatos que a maçã passou a simbolizar, o útero e seu fruto, o êxtase e a sua vez, a sua imperiosidade. O movimento da maçã é sempre concêntrico, como todo transfinito: infinito voltado para si mesmo e seu âmago.
O Fogo, o Sopro e a Sensualidade
O movimento da concentricidade, presente nos cortes e lâminas, longitudinais ou transversais, apontando para a fertilidade, para a semente, para o feto, trazem de volta o princípio da vida. Nos mitos ocidentais da criação o sopro representa o gesto primordial. Maria Villares retorce fios de cobre em movimentos fetais, sobre eles o sensível papel-arroz, ou então seleciona lâminas diversas dos diferentes cortes da fruta em baixo do mesmo papel, e aplica por fim sopros de ar quente, deixando sobre o papel o registro do sopro, do fogo e da sensualidade, da maçã e seus movimentos, seus espaços e suas entranhas. Resulta o registro do êxtase como gesto primordial da criação. A maçã transfinita, objeto da arte de Maria Villares, deixa vislumbrar um Deus sensual que sussurra seu hálito quente sobre as sementes, transformando-as em criaturas.
Norval Baitelo Junior
16 de agoste de 1998.
MARIA VILLARES
Maria Alice Milliet
Maria apresenta sua primeira individual: explícito confronto entre a exuberância cromática da pintura e a severidade do desenho.
O pleno domínio dos meios expressivos deriva de uma obstinação silenciosa e atesta a maturidade da obra. Não há gratuidade nem espontaneismo no fazer; a qualidade plástica do conjunto está lastreada no conhecimento aprofundado de técnicas tradicionais as quais a artista incorpora recursos alcançados na experimentação. Existe ímpeto e contenção, lirismo e dramaticidade no exercício “dos esforços fiéis e das surpresas provocadas” (Bachelard).
A poética de Maria envolve sempre o drama da matéria enquanto resistência e transformação. É no atrito entre o ser e o devir que investe sua criação.
Durante a infância das filhas, iniciou-se na cerâmica realizando objetos utilitários até que a exploração da forma escultórica se impôs. Uma botânica imaginária feita da invocação de sementes e cascas configura-se em esculturas onde cerâmica e bronze estão associados. Cápsulas em que os núcleos em barro esmaltado são envolucrados pelo metal rugoso. É o diminuto que se agiganta, livre das grandezas estabelecidas.
A passagem da cerâmica para a aquarela ocorreu após um período de intensa inquietação. Em ateliê improvisado e sem luz natural a artista dedicou-se ao desenho a carvão e grafite saindo dali para um espaço maior e a irrupção da cor em seu trabalho.
E chegamos ao aquário seco, fonte de inspiração plástica, lugar onde são metabolizadas as imagens de seus trabalhos seguintes. Maria acumulou em recipientes de vidro lembranças das praias percorridas: conchas, caramujos, seixos, gravetos, fragmentos de rocha… Reteve ali o encanto pelo estranhamento de formas e cores, produzido pelo desgaste da água e do vento nos objetos recolhidos. Eis-nos diante de uma beleza arcaica.
Da contemplação deste microcosmo derivam de início aquarelas e a seguir pinturas sobre tela. Nas obras sobre papel, manchas aquareladas formam com a trama linear composições sutilmente articuladas. Nas telas, numa primeira fase, persiste o temperamento aquoso, translúcido da aquarela. Superada a transposição para a nova técnica, o campo amplia-se e o óleo impõe seu caráter. A massa pictórica ganha densidade pela sobreposição de camadas ou quando a tinta é encorpada com outros materiais. A cor percorre a escala cromática e chega a saturação. A linha, decorrente de uma gestualidade sem hesitação, energiza a tela. Na produção atual, a pintura afirma sua autonomia: na materialidade – tinta e suporte – reside a substância do seu próprio vir a ser.
“Em viagem ao Maranhão, a artista recolheu pedaços de madeira abandonados pela maré. Através de uma série de pequenos desenhos empreendeu o reconhecimento destes fragmentos corroídos pela água salgada, pelo roçar da areia, fustigados pelo vento. A ação agressora deixara marcas e encontrara resistências. Saliências e reentrâncias inscreveram-se nas superfícies outrora lisas transformando os volumes em formas torturadas: toda uma história ficara registrada naqueles corpos.
Retornando a São Paulo, Maria transportou algumas destas anotações para grandes dimensões sobre papel, tela ou poliéster. Começa uma nova fase em sua obra.
Os detritos assumem aspecto de entidades ancestrais dramaticamente tratadas em preto, branco e gradações de cinza. Flutuam como meteoritos. Solitários ou em dupla emergem fantasmáticos do espaço vazio em lenta aproximação ou no centro de um turbilhão de luz.
Maria Alice Milliet
Setembro de 1994
Exposição individual – Maria Villares
Galeria Nara Roesler – São Paulo/SP