depoimentos

PONTOS DE PARTIDA

Curta metragem produzido por Lívia Escobar Gabbai em 2023, por ocasião da exposição Flor e Pedra, da artista plástica Maria Villares. O filme aborda seu ambiente de trabalho, o processo de criação da artista e seus pontos de partida para sua produção.

NEXUS POR MARIA VILLARES

exposição realizada em 2018

Produção: Volta Filmes
Diretor de produção: Tiago Villares
Fotografia: Rawi Santos
Montagem: Adriana Bassi
Trilha: Arthur França
Mixagem: Camilo Carrar

Curadoria: Ana Angélica Albano
Montagem exposição: Andrea Angulo, Renato Silva
Local: Espaço Nexus

Agradecimentos: Ailaiqueti

A FIANDEIRA DO INVISÍVEL

entrei.

a grande e principal obra içada no centro do espaço se impõe e desperta curiosidade. conhecer um pouco mais do processo de sua feitura desperta ainda mais interesse e potencializa a apreciação. ela começa a falar e acaba por fazer um convite: observar em todas as direções. assim, o olhar se distribui pelo salão.

caminho.

deixo os olhos pousarem livremente pelas obras. as linhas, as releituras e as conexões vão se apresentando. seria a obra central algo como uma matriz, força geradora de outras tantas possibilidades expressivas? será que estou diante de um processo de releitura da própria artista e de sua obra, visitando e revisitando seu percurso?

que lugar incrível!

obras e visitantes são banhados pela luminosidade solar de um sábado de verão; dentro, uma atmosfera neutra destaca e valoriza as obras. toda a estrutura, minuciosamente arquitetada, vai aos poucos sendo incorporada pela produção da artista. após um tempo, tenho a sensação de que são as obras que sustentam o espaço.

chego logo após a abertura. portanto, ainda são poucos os convidados. por isso, ganho, como um presente, a companhia da artista e da curadora.

caminhamos. conheço mais dos processos, das convocações, dos chamados. uma sensação amorfa começa a brotar.

mãe e filhas bailam pelos sutis fios da conexão. me emociono.

subo as escadas. conheço o ateliê. ah, a beleza dos detalhes…

avisto o jardim ao lado.         desço as escadas.

a luminosidade externa começa a diminuir. delicadamente, algumas luzes internas são acesas. as obras se projetam no chão e um novo desenho se apresenta. ah! pena não poder acompanhar as mudanças de luz até o anoitecer…

a sensação no peito ainda está lá, misteriosa.

afasto-me por uns instantes, vou para o jardim dos fundos e olho para o espaço, tentando decifrar o que se passa.

não decifro. ando mais um pouco tentando encontrar alguma resposta. converso um pouco mais. chegou o momento de ir embora.

muitas coisas me tocaram: as obras, o espaço, os cuidados delicados e discretos de produção e curadoria, os detalhes. a emoção chegou diante da obra em que mãe e filha estavam juntas.

mas havia, ainda, um pequeno mistério.

conversando com minha terapeuta na segunda-feira, reconstruo a experiência. ao narrar minhas percepções, surge, em minha imaginação, ativado pelo próprio relato, algo que até então não tinha conscientizado:

fios invisíveis.

havia uma delicada conexão entre a obra principal, a produção dela decorrente, o espaço e a artista.

reconstruindo a experiência dias depois, vem à mente a sensação de andar pela mata e sentir teias de aranha pelo rosto. pois foi assim que me senti: tocado por fios invisíveis e delicados, imperceptíveis ao corpo. perceptíveis num nível sutil.

o centro disso tudo?

a figura quase arquetípica içada no centro do salão, um manto transparente tecido por mãos incessantes, resultado do desejo resoluto de não parar.

a obstinação de continuar compõe o cerne da obra. aprendendo com sua criadora, a obra decide criar suas próprias conexões, com o espaço e com o público.

assim fui tocado.

pela visível persistência de fiar o Invisível.

Encontramos ao longo da produção artística de Maria Villares o olhar atento à natureza; sementes, conchas, peles, encontrados, coletados, anotados e colecionados. O olhar que se detém na busca destes elementos, se une ao que constrói a obra. 

Cada trabalho mostra a evolução de um processo que estreita a relação de técnicas especificas (pintura, cerâmica, gravura ou desenho), transformando o resíduo da natureza em base para uma reflexão construtiva. 

Os papeis são tratados como cascas que revestem a base da pintura. 

O pigmento é arrastado pela água sobre o papel, tecendo peles transparentes.

Na pintura, as camadas de tinta se desmancham em véus brancos; a cor aplicada sobre as formas, tecem tramas, órgãos, ossos. 

As sementes ganham na cerâmica e no bronze, um território a ser fertilizado, construindo formas orgânicas, trazendo de volta a matéria viva para  o barro .

O referente ressurge e desaparece em camadas e formas que aproximam e se afastam. 

A abstração, sempre acompanhada de forte relação com a matéria, nasce de sua força pictórica e formal. 

 para 
 maria villares

 sérgio de azevedo

 são caetano do sul,
 verão de 2018.


Série Nexus

por Maria Villares

A memória interpreta o que se viveu ou o que se pensa ter recordado."

Certo dia, em abril de 2001, era ainda bem cedo, encontrei várias teias de aranha entre árvores e arbustos, de diferentes tamanhos e formas, cheias de orvalho. Este encontro me tocou; idéias começaram a surgir, relacionei as gotas de orvalho a lágrimas, aos líquidos liberados quando as tensões se liberam, segundo Louise Bourgeois. Observei o trabalho daquelas aranhas, refazendo os fios continuamente com eficiência invejável. Alguns dias depois comecei a tecer com os fios plásticos transparentes. Me ocupei com a construção da trama sem antever o resultado final; era preciso tricotar muito, construir teias, repetindo sempre meus gestos, continuamente, por horas. Por vezes tive a sensação da suspensão do tempo e o envolvimento intenso permitiu que a memória e os afetos aflorassem. O fazer se fez trabalho…

Com o adensamento das malhas, e o volume acumulado em meu colo, após as primeiras horas, senti como se uma grande quantidade de líquido houvesse se materializado pelo movimento de meus dedos. Fui tomada por intensa emoção e me lembrei de quando tricotava, há vários anos, apenas para manter minhas mãos ocupadas, construía peças utilitárias. Era um fazer mecânico. Agora a ação me pega por inteiro, a alma está presente, é uma atividade prazerosa, um fazer poético; existe uma intenção. É imprescindível o gesto repetitivo, envolvente, que dá forma a esse tecido, mas a perspectiva do projeto é muito maior.

Os desenhos começaram quando os primeiros módulos já estavam adiantados. Tive vontade de registrar as sobreposições dos fios, os nós, a linha ondulada e contínua. Utilizei vários tipos de tinta, penas e canetas, eu mesma fiz algumas de bambu. Estas variações geraram interesse especial porque ocorreram diferenças sutis na linha. Como aconteceu com o tricotar dos fios, também este ato de desenhar solicitou a repetição do movimento, atenção continuada e muita calma. O olho fixo na linha das malhas, do já construído, capta o percurso dos fios e a mão os traduz em tinta sobre papel e ranhuras sobre tinta.

Acho que depois de montados, os módulos produzidos adquiriram um caráter de desenho no espaço, houve uma complementação, um espelhamento das duas produções.

Em seguida surgiram os objetos, alguns feitos em técnica de crochê , estruturados por costuras e fios de chumbo. E a produção continua com gravuras em metal e pintura sobre tela, sempre enfatizando a linha.

(*) Nexus, us: enlaçamento, nó, laço.

Nexus, a, um: atado, ligado, encadeamento das causas. (dicionário latino)

MUITO ALÉM DA MAÇÃ

por Maria Villares

 


Durante três anos mergulhei no tema da maçã de forma quase obsessiva sem conhecer os motivos desta forte motivação.

Por um bom tempo prevaleceu a disciplina própria da ciência. Submeti as maçãs a uma série de operações e registrei informações sobre seus diferentes estados durante o correr do tempo tanto com a fruta inteira como em fatias, colocadas sobre folhas de papel.

Fiz inúmeros desenhos e em seguida impressões das lâminas em acetatos transparentes que permitiram sobreposições e jogos compositivos.

Com enorme entusiasmo e maravilhamento, criei objetos manipuláveis em acrílico, interferi em antigas radiografias com ponta seca.

Diante da produção já bem expressiva, certa manhã fui tomada por profunda emoção que me levou às lágrimas: associei as imagens a partes do corpo, nítidos embriões … a memória do nascimento de minha última filha. Compreendi onde meu inconsciente se revelou.

Em seguida criei objetos tridimensionais em grande escala.

GRAVETOS COM HISTÓRIA

por Maria Villares

O desenho, fio condutor em minha produção, se dá pelo encontro do que me atrai e me emociona ao conjugar vida e obra.

Me entrego à observação de formas que me instigam. Anotações e registros abrem caminhos para trabalhos em diversas técnicas que com frequência se somam. Assim aquarelas podem ser acrescidas com guache e pinturas com traços em carvão, que definem formas em meio à camadas e sobreposições.

Certa inquietação me leva à busca de algum estranhamento/mistério em minhas imagens que têm como ponto de partida a atração por objetos orgânicos. Através dos anos, acumulei coleções de sementes, conchas, pedras, ossos, fragmentos secos de plantas e insetos.

Quase 10 anos dedicados à cerâmica utilitária e modelagem de algumas esculturas, sempre abrangendo todas as etapas do processo inclusive o preparo dos esmaltes.

A passagem da cerâmica para a aquarela me trouxe de volta à cor e à luz.

No início da década de 90, montei um aquário seco com espelhos e os objetos de minha coleção e trabalhei em série com desenhos e pinturas, aquarela e óleo.

Minha primeira exposição individual foi em 1994, apresentei pinturas e grandes desenhos em diferentes suportes (papel, tela e poliéster) que fiz a partir de registros de pequenos pedaços de madeiras abandonados pela maré, nas praias do Maranhão; fragmentos corroídos e fustigados pelo tempo com marcas de sua história.

Dei o título à esta série: Gravetos com História.